segunda-feira, agosto 09, 2004

O poder libertatório do "vai se fuder"

Já vi no passado, mas continua muito interessante. Vale a pena ler de novo!

(Luís Fernando Veríssimo)
Os palavrões não nasceram por acaso. São recursos extremamente válidos e criativos para prover nosso
vocabulário de expressões que traduzem com a maior fidelidade nossos mais fortes e genuínos sentimentos.
É o povo fazendo sua língua. Como o Latim Vulgar, será esse Português vulgar que vingará plenamente um dia.
Sem que isso signifique a "vulgarização" do idioma, mas apenas sua maior aproximação com a gente simples das
ruas e dos escritórios, seus sentimentos, suas emoções, seu jeito, sua índole.
"Pra caralho", por exemplo. Qual expressão traduz melhor a idéia de muita quantidade do que "Pra caralho"?
"Pra caralho" tende ao infinito, é quase uma expressão matemática. A Via-Láctea tem estrelas pra caralho, o Sol é
quente pra caralho, o universo é antigo pra caralho, eu gosto de cerveja pra caralho, entende?
No gênero do "Pra caralho", mas, no caso, expressando a mais absoluta negação, está o famoso "Nem fodendo!".
O "Não, não e não!" e tampouco o nada eficaz e já sem nenhuma credibilidade "Não, absolutamente não" o substituem.
O "Nem fodendo" é irretorquível, e liquida o assunto. Te libera, com a consciência tranqüila, para outras atividades de
maior interesse em sua vida.
Aquele filho pentelho de 17 anos te atormenta pedindo o carro pra ir surfar no litoral?
Não perca tempo nem paciência. Solte logo um definitivo "Marquinhos, presta atenção, filho querido, NEM
FODENDO!".
O impertinente se manca na hora e vai pro Shopping se encontrar com a turma numa boa e você fecha os olhos e volta
a curtir o CD do Lupicínio.
Por sua vez, o "porra nenhuma!" atendeu tão plenamente as situações onde nosso ego exigia não só a definição de
uma negação, mas também o justo escárnio contra descarados blefes, que hoje é totalmente impossível imaginar que
possamos viver sem ele em nosso cotidiano profissional.
Como comentar a gravata daquele chefe idiota senão com um "é PhD porra nenhuma!", ou "ele redigiu aquele
relatório sozinho porra nenhuma! .
O "porra nenhuma", como vocês podem ver, nos provê sensações de incrível bem estar interior. É como se
estivéssemos fazendo a tardia e justa denúncia pública de um canalha. São dessa mesma gênese os clássicos
"aspone", "chepne", "repone" e, mais recentemente, o "prepone" - presidente de porra nenhuma.
Há outros palavrões igualmente clássicos. Pense na sonoridade de um "MULHER MARAVILHOSA-que-pariu!", ou seu correlato
"MULHER MARAVILHOSA-que-o- pariu!", falados assim, cadenciadamente, sílaba por sílaba...
Diante de uma notícia irritante qualquer um "MULHER MARAVILHOSA-que-o- pariu!" dito assim te coloca outra vez em seu eixo.
Seus neurônios têm o devido tempo e clima para se reorganizar e sacar a atitude que lhe permitirá dar um merecido
troco ou o safar de maiores dores de cabeça.
E o que dizer de nosso famoso "vai tomar no cú!"? E sua maravilhosa e reforçadora derivação "vai tomar no olho do seu cú!". Você já imaginou o bem que alguém faz a si próprio e aos seus quando, passado o limite do suportável, se dirige
ao canalha de seu interlocutor e solta: "Chega! Vai tomar no olho do seu cú!".
Pronto, você retomou as rédeas de su a vida, sua auto-estima.
Desabotoa a camisa e saia à rua, vento batendo na face, olhar firme, cabeça erguida, um delicioso sorriso de
vitória e renovado amor-íntimo nos lábios.
E seria tremendamente injusto não registrar aqui a expressão de maior poder de definição do Português Vulgar: "Fodeu!".
E sua derivação mais avassaladora ainda: "Fodeu de vez!".
Você conhece definição mais exata, pungente e arrasadora para uma situação que atingiu o grau máximo
imaginável de ameaçadora complicação? Expressão, inclusive, que uma vez proferida insere seu autor em todo um
providencial contexto interior de alerta e auto- defesa. Algo assim como quando você está dirigindo bêbado,
sem documentos do carro e sem carteira de habilitação e ouve uma sirene de polícia atrás de você mandando
você parar: O que você fala? "Fodeu de vez!".
Sem contar que o nível de stress de uma pessoa é inversamente proporcional à quantidade de "foda-se!"
que ela fala. Existe algo mais libertário do que o conceito do "foda-se!"? O "foda- se!" aumenta minha
auto-estima, me torna uma pessoa melhor. Reorganiza as coisas. Me liberta.
"Não quer sair comigo? Então foda-se!". "Vai querer decidir essa merda sozinho(a) mesmo? Então foda-se!".
O direito ao "foda-se!" deveria estar assegurado na Constituição Federal. Liberdade, igualdade, fraternidade e foda-se!.
Grosseiro, mas profundo...
Pois se a língua é viva, inculta, bela e mal-criada, nem o Prof. Pasquale
explicaria melhor. "Nem fodendo..."